29.6.10

Sobre perfeição e laranjas

“Gostaria de saber por quanto tempo vai ficar me olhando, pra eu poder calcular quanto vou cobrar!”– disse-me a Amélia, faceira, na primeira vez em que eu a vi. Os olhos eram de um verde amarelado levemente acinzentado que eu nunca tinha visto; eram grandes e pareciam interessados em tudo, porque abriam-se ao limite, sem nenhum esforço; mas não olhavam para mim, olhavam para a mesa 21 do boteco Santa Tereza, esquina de assombros de boêmia desregrada que não costumava receber tão belas criaturas. Ela disse aquilo e fez um movimento ríspido para o lado, que chacoalhou o ar ao redor e me jogou um pouco do cheiro de banho que ela tinha. Hesitei por um minuto de agonia que me subtraiu um século e respondi, firme, à sua pergunta: “55 minutos só, pode ser?” – abri aquele sorrisão de vender creme dental e mudei o chiclete de lado, fingindo descontração. Foram exatos três segundos de uma expressão indefinida até que ela, rendida, sorrisse também. A redenção abriu o caminho em que estou até hoje. Amélia e eu vivemos há 25 anos naquilo que, se não for amor, não sei do que posso chamar. É certo que meu bigode já não me cai bem em conjunto com a calça listrada. E nem o meu cabelo tem o balanço necessário para se deixar cair aos ombros. Já não cabe aquela interpretação quase shakespereana em que nos lançávamos para fingir desinteresse, sempre que havia muito dele. Sob outros e estranhamente inabaláveis alicerces é que se sustenta a nossa durável relação. Sinto-me protegido num amontoado de nuvens brancas e serenas, onde tudo é segurança e perfeição desconcertante. Agora que os olhos de Amélia, vencidos pela passagem do tempo, já não são tão grandes, nem tão esverdeadamente amarelado, eu poderia fazer disso belas razões para não mais querer essa vida; criar válvulas de escape mentais para fugir dessa rotina disfarçada de amor e dizer que perdi anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero! Mas nem ao menos argumentos suficientemente negativos e convincentes eu tenho para querer fugir. “O grande e perturbador problema dos aviões é que não podemos descer a toda hora para comprar laranjas”, eu me alivio, lembrando Mário Quintana, enquanto saio subitamente do meu castelo para comprar laranjas para a minha Amélia.

PS: Crônica escrita pra um trabalho de Produção de Texto da faculdade.

23.6.10

Inclassificável


Ela mal sabia as horas quando ele entrou por seu coração dilacerado e se instalou sem nem bater na porta. Entrou, se esticou, deitou, rolou, cantou, dançou, e depois, em vez de se jogar na Lagoa Rodrigo de Freitas, se instalou. Já tem cama, comida, roupa lavada. Lugar certo na poltrona, cadeira reservada na mesa e escova de dentes. E aquele jeito de dormir? O jeito plácido de olhar, o jeito de não olhar. Ah, o jeito de não olhar... O sorriso tímido de quem ri em lugar que não pode, o jeito terno de dobrar a esquina e olhar pra trás, a tranqüilidade. Os delírios em sonho, os sonhos em realidade, a realidade delirante. Os filmes recheando tardes vazias, as mãos esquentando o frio, o macarrão esparramado no prato. E aquele casaco azul? E aquela mochila nas costas? O cabelo mal ajeitado do lado, o dente sujo de biscoito, o pescoço cheirando a perfume matinal. E os risos contínuos? O dormir e acordar, o acordar pra depois dormir outra vez, o sorriso despercebido, no cantinho da boca, lindamente espontâneo.
E a saudade? O aperto bem no meio do coração, a sensação de ter esquecido como é sorrir mutuamente, a vontade de ver passando pela janela quando só se ia fechar a cortina, e sair correndo fazendo palhacice, a vontade de encontrar por aí, casualmente. Mas não, há a falta. E a ausência? O buraco, o tracejado reticente de mim mesma, a lacuna que só me há quando você não está. Mas depois torna tudo a se repetir. E nós?
Os apertos e rodopios, as cantorias e as artimanhas, os sabores e os amores, os doces e os levemente amargos, os abraços e os afagos, o apego, o sossego. E aí volta a ausência, soberana, em passinhos sorrateiros, fazendo-se por despercebida, levando um tanto de nós, e trazendo um pouco mais de nós, muitos nós, que custam a desatar. Ela nem sabia o que era que chegou invadindo, e seguiu colorindo. Hoje já está desbotado, quase imperceptível. Não importa: pra muita coisa importante falta nome.

10.6.10

Sobre o tempo

Há muito tempo não penso nele. Talvez esse seja o motivo dele vir caindo sobre mim com tamanha brutalidade. O fato é que ele vem comigo para onde eu vou, não consigo driblar o tempo. Sacana. Recorro às cinco letras que o formam para me queixar. 
O tempo senta-se a me olhar enquanto me arrasta por suas vontades, sempre exibindo seus dentes largos de satisfação. Mas não o culpo, é assim desde o seu início, e é assim com todas as pessoas. Já o caluniaram por todos os cantos. Souberam dignar-lhe ingratidão quando, rápido, acelerava os seus ponteiros. Oportunava-lhe o ofício: adiava-se o passo para agradar a quem lamentava o seu afã, nutria a tristeza dos que, mergulhados em alguma infelicidade, admiravam apenas a passagem das horas. Mas acontece que o tempo, tolo por tantas vezes, notou que precisava apenas prosseguir, sem medir as consequências. Talvez aí tenha nascido a sua arrogância: não por gostar de assumir tanta honra, mas por saber o seu lugar no mundo. 
O tempo passou a bastar-se. Desliza em seus passos sorrateiros por onde quer direcionar os trilhos do mundo, e nada abole o seu passeio. Decide direções, faz escolhas, amortece dores e desbota cores. Arquiteta sesações, eterniza sentimentos, possibilita esquecimentos. Faz brotar inovações, apaga vanguardas, esmigalha o que fica pra trás. Condiciona os sabores, a direção dos ventos e a duração dos amores. Inspira, mas remete a chichês: o tempo não pára. É por causa dele que existe o aprimoramento e o requinte; a evolução e o retardamento; o declínio, a escassez, a falência múltipla dos órgãos; o ir e a possibilidade de voltar; o espaço, a probabilidade: a estúpida alternativa de deixarmos pra depois. 
Cada vez mais, tem as faces coradas quando mencionam seu nome por aí. Artigo de luxo da atualidade, ele ajuda, inconscientemente, a erguer os faustos de um mundo que até para respirar, o faz apressado. O tempo é irritantemente contínuo e misteriosamente incerto. Já lhe apontaram o dedo na cara aqueles que recriminam a sua implacabilidade. Outros, não sem nenhuma ironia, chamam-lhe “compositor de destinos”, “tambor de todos os ritmos”. Alguns, mais sutis, tratam-no intimamente de “mano velho”. Bobagem. Ele não busca companhia, deseja apenas ser tempo. Segue enérgico, a passos firmes, sem perceber as distorções que faz – ou deixa de fazer. Mal sabe que, por diversas vezes, o seu avanço contínuo e fugaz não evitou que permanecessem ilesos alguns aspectos da humanidade; não somente os cantos insólitos, como também os mais evidentes e gritantes: todos imunes às variações que o ele é habilitado a fazer. 
O mundo não se decide em relação ao tempo, observa o seu próprio percurso e consegue sair intacto às suas manifestações. Daí vem o porquê de o que é moderno ou avançado nem sempre estar aliado às artimanhas temporais. Cheio de astúcia, esse tempo. Agora mesmo ele ri por mim um riso tímido e quieto por ter passado impunemente enquanto tirava-me horas irreversíveis, fazendo-me pensar nele. Seu conceito é o retrato primoroso da complexidade. Mas talvez seja só porque eu há muito não pensava nele. E talvez também por isso, ele caia sobre mim com tamanha brutalidade, rindo um riso tímido e quieto.

8.6.10

Sobre árvores e ventos

4661870368_044238b32f_largeEsses dias li em algum lugar que pessoas são como árvores, mas  isso me incomodou. Certa vez Eça de Queiroz disse que "a vida é essencialmente vontade e movimento". Não quero ser árvore, mas preciso ser, e até confesso que sou. Preciso de minhas raízes, preciso saber onde eu começo para entender onde termino. Preciso me firmar, nem que por pouco tempo:  ter meu ancoradouro. Me anima mais a idéia de ser catavento, que a cada giro mostra uma cor diferente, mas é preciso cautela, saber que até para ser catavento é necessário se estar submetido a alguma coisa, afinal, é estar inteiramente a mercê da pretensão do vento. Pra falar a verdade quero mesmo é ser metade árvore, metade vento. Vento para jamais parar de soprar, e árvore para sempre ter onde sossegar. 
- Pensava ela debaixo de uma árvore, enquanto o vento soprava acelerado o enfado de uma manhã de segunda-feira.

3.6.10

Sobre leveza

Naquele dia ela pensava em como as pequenas pedras que emolduravam o mar eram metodicamente pesadas para contrastarem com a leveza da água quando nela fazem aquele barulhinho bom de escutar. As pessoas que dividiam aquele espaço com ela, ocupadas em viver aquele sol e aquele verão, não compartilhavam dos mesmos pensamentos, e o que acontecia era que toda aquela angústia cabia perfeitamente em todo aquele espaço, ainda que a pequenice de sua cabeça não lhe permitisse guardar muito mais que alguns tormentos. Deitada na areia quente, não conseguia dormir. As pessoas continuavam a rir e conversar, a escandalizar e a rir, a fumar e a rir, a se movimentar rindo, e a rir tanto, que pareciam chorar.Ela ignorava, queria dar vazão àquelas dúvidas, continuava a pensar na leveza. Não conseguia dormir. Os olhos fechados e a mente aberta. A boca se permitindo inundar daquele ar e de todo aquele mormaço; a preguiça que aquela calmaria proporcionava. Ela pensava em como o verão podia ser leve; as roupas, o tempo que se estende, as obrigações que ficam para depois da cerveja, que ficam para depois do almoço, que ficam para depois daquela noite mal dormida e pra depois daquele dia em que todo mundo sente sono. Enquanto grudava seu corpo na quentura da areia, pensava em tudo que existe como um ciclo; pensou tanto que, no final, o peso das pedras em frente ao mar deixou de importar, já fazia algum sentido. Mas, principalmente, ela própria se sentia diferente, um tanto mais aliviada e menos insignificante que no início daquele temporal sazonal de sensações. Apenas diferente: mais leve, afinal. A vida é feita para se morrer dela!