25.3.10

Feliz na hora errada





Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero na hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim. eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais.
O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncios dentro de mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro”
Clarice Lispector in Um Sopro de Vida

Memórias de uma Gueixa

















"Uma árvore sem folhas e galhos ainda é considerada uma árvore? O coração morre lentamente, perdendo as esperanças como folhas. Até que, um dia, nada resta. Nenhuma esperança. Não resta nada.
Ela se pinta para esconder o seu rosto. Seus olhos são águas profundas. O resto é escuridão. O resto é segredo.
Não podemos pedir ao sol, mais sol.
Nem à chuva, menos chuva.
Mesmo assim, conhecer a bondade, depois de tanta maldade, ver que uma menina mais corajosa do que ela imaginava teria suas preces atendidas…
Isso não é o que chamamos de felicidade?
Afinal, estas não são as memórias de uma Imperatriz, nem de uma Rainha. Estas são memórias de um outro tipo”

Trecho extraído do filme Memórias de uma Gueixa




Sempre acontece...












Ora veja… é o que sempre acontece às pessoas românticas: enfeitam uma criatura, até o último momento, com penas de pavão, e não querem ver, nela, senão o que é bom, muito embora sentindo tudo ao contrário. Jamais querem, antecipadamente, dar às coisas o seu devido nome. Essa simples idéia lhes parece insupertável. A verdade, repelem-na com todas as forças até o momento em que aquela pessoa, engalamada por elas próprias, lhes mete um murro na cara”
Fiodor Dostoiévski in Crime e Castigo

22.3.10

Mudanças
















Quando nos dedicamos, com o coração, à busca do autoconhecimento, é inevitável que chegue um instante em que algumas mentiras que contávamos para nós mesmos passem a não funcionar mais. Os disfarces até então utilizados para fortalecer o nosso autoengano já não nos servem. Inábeis com a paisagem aos poucos revelada, às vezes ainda tentamos nos apegar a alguma coisa que possa encobrir a nossa lucidez, embaraçados que costumamos ser com as novidades, por mais libertadoras que sejam. É em vão. Impossível devolver a linha ao novelo depois que a consciência já teceu novos caminhos. Existem portas que se desmancham após serem atravessadas, como sonhos que se dissolvem ao acordarmos. Não há como retornar ao lugar onde a nossa vida dormia antes de cruzá-las. Da estreiteza à expansão. Da semente à flor. Do casulo às asas, ensinam as borboletas.

Ana Jácomo

21.3.10

Eu não sou muito boa nessa história de consolar, especialmente quando tenho as mãos frias e a cama é quente. Carreguei-o com delicadeza pela rua destroçada, com sal nos olhos e o coração mortalmente pesado. Observei por um instante o conteúdo de sua alma, e vi um menino pintado de preto, gritando o nome de Jesse Owens ao cruzar uma fita de chegada imaginária. Vi-o afundado até os quadris em água gelada, perseguindo um livro, e vi um garoto deitado na cama, imaginando que gosto teria um beijo de sua gloriosa vizinha do lado. Ele mexe comigo, esse garoto. Sempre. É sua única desvantagem. Ele pisoteia meu coração. Ele me faz chorar.

Markus Zusak In “A menina que roubava livros

Às vezes sinto vontade de distanciar-me do solo, às vezes preciso fazer transbordar o mundo inteiro de amor, às vezes necessito de êxtase para alimentar meu cérebro. Quando não existe nada mais senão eu e o céu estrelado, a lua assume uma expressão infantil e não ouso mais lhe sorrir. Sinto poder ser uma criança também, são elas os verdadeiros observadores do universos

Mian Mian in Bombons Chineses






17.3.10

Dois Barcos


Quem bater primeira dobra do mar
Dá de lá bandeira qualquer
Aponta pra fé e rema
É, pode ser que a maré não vire
Pode ser do vento vir contra o cais
E se já não sinto teus sinais
Pode ser da vida acostumar
Será, Morena?
Sobre estar só, eu sei
Nos mares por onde andei
Devagar
Dedicou-se mais
O acaso a se esconder
E agora o amanhã, cadê?
Doce o mar, perdeu no meu cantar
Só eu sei
Nos mares por onde andei
Devagar
Dedicou-se mais
O acaso a se esconder
E agora o amanhã, cadê?

Dois Barcos - Los Hermanos


12.3.10

Faz parte...

Valentim era, como eu, sozinho. Eu tinha sido traída por uma pessoa, ele pelo destino. Mas, ao contrário de mim, não conseguia deixar partir de verdade quem se fora.
Eu sabia que era preciso tempo. Cada perda tem sua hora de acabar, cada morto seu prazo de partir, e não depende muito da vontade da gente. Ele não estava curado.
(…)
Acordo com Valentim ao meu lado. Passo de leve a mão em seu rosto adormecido, acompanho com o dedo o contorno de sua boca, beijo seu ombro e me aconchego mais nele: aqui é o meu lugar no mundo. E o dele também. Do nosso jeito, estamos construindo – mais uma vez – a vida.
A dor faz parte.

Lya Luft in “O silêncio dos amantes”

Arranjo Universal











Como eu disse, deveria haver um sistema diferente. Deveria haver algum tipo de arranjo universal que não deixasse espaço para mal-entendidos. Poderia envolver sinais de mão, talvez. Ou pequenos adesivos discretos presos na lapela, com código de cores para diferentes mensagens:

Disponível/Não disponível.

Com relacionamento/Sem relacionamento.

Sexo iminente/Sexo cancelado/Sexo meramente adiado.

De que outro modo a gente vai saber o que está acontecendo? Como?
Na manhã seguinte pensei muito e com intensidade e não cheguei a lugar nenhum. Ou a) Nathaniel ficou ofendido com minhas referências ao sexo e não está mais interessado ou b) ele está bem, tudo continua de pé, ele só estava sendo homem e não dizendo muita coisa, e eu deveria parar de ficar obcecada.
Ou algo no meio.
Ou alguma outra opção que nem considerei. Ou …
Na verdade acho que isso cobre as hipóteses. Mas mesmo assim. Estou totalmente confusa só de pensar.


Sophie Kinsella in “Samantha Sweety, Executiva do lar”

7.3.10





























''E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.''

Charles Baudelaire













"(...)Não gosto de meias-palavras, de gente morna, nem de amar em silêncio. Aprendi que palavra é igual oração: tem que ser inteira senão perde a força. E força não há de faltar porque – aqui dentro – eu carrego o meu mundo. Sou menina levada, sou criança crescida com contas para pagar. E mesmo pequena, não deixo de crescer. Trabalho igual gente grande, fico séria, traço metas. Mas quando chega a hora do recreio, aí vou eu... Escrevo escondido, faço manha, tomo sorvete no pote, choro quando dói, choro quando não dói. E eu amo. Amo igual criança. Amo com os olhos vidrados, amo com todas as letras. A-M-O. Sem restrições. Sem medo. Sem frases cortadas. Sem censura. Quer me entender? Não precisa. Quer me fazer feliz? Me dê um chocolate, um bilhete, um brinde que você ganhou e não gostou, uma mentira bonita pra me fazer sonhar. Não importa. Todo dia é dia de ser criança e criança não liga pra preço, pra laço de fita e cartão com relevo. Criança gosta mesmo é de beijo, abraço e surpresa!


(E eu – como boa criança que sou – quero mais é rasgar o pacote!)"

Fernanda Mello


1.3.10

Há mais de uma ano atrás assisti ao filme "O Banquete do Amor"; das poucas coisas que me chamaram atenção, uma delas foi o trecho inicial com o personagem Harry, interpretado pelo ator Morgan Freeman. Eis aqui:

"Há uma história sobre os deuses gregos. Eles estavam entediados, então inventaram o ser humano. Mas continuaram entediados, então inventaram o amor. Assim, não se entediariam mais. Então, resolveram experimentar o amor. E, finalmente, inventaram o riso, para que conseguissem suportá-lo."

É... às vezes só rindo mesmo para suportar o amor. Não que ele seja algo ruim, de maneira alguma; mas não seria nada fácil de enfrentar as desavenças do cotidiano, as brigas, os ciúmes, até mesmo nosso próprio comportamento, não fosse o humor. Já li várias reportagens sobre casais que estão juntos há 40, 50 anos (velhinhos românticos!), e todos afirmam: é necessário humor para se conviver tanto tempo na mesma casa. Rir das caras de patetas, rir quando o jantar não dá certo, rir quando chegam parentes inconvenientes para se hospedar em casa; rir de tudo, até de si mesmo. Afinal, "o amor nos torna patéticos", como já dizia (e não faz muito tempo!) Rita Lee, na letra de "Amor e Sexo".